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Química, pimentas e as religiões de matrizes africanas e indígenas

Olá, caros leitores! Como vão? Espero que bem... Certamente você já sentiu a sensação de calor e ardência dentro de sua boca ao saborear certos pratos e alimentos. É de conhecimento popular que o que ocasiona esta sensação nos pratos são as pimentas. A sensação de ardência e calor na culinária está reservada às pimentas. Atualmente, as pimentas são utilizadas em diversas receitas, nos mais variados lugares do planeta. Normalmente, as pimentas fazem parte de diversas comunidades e culturas que têm como tradição o uso destes vegetais atrelado à culinária. Um clássico exemplo é a culinária mexicana, que em geral é associada ao uso de pimentas em seus pratos. Mas você sabia que pimentas são plantas muito importantes para algumas religiões de matrizes africanas e também em algumas tradições de povos indígenas brasileiros? Bora saber mais sobre esses assuntos!


Além de outras referências, este texto foi baseado no capítulo intitulado “Química das pimentas pelos caminhos de Exu” do livro “Conteúdos cordiais: Química humanizada para uma escola sem mordaça” dos autores Roberto D. V. L. de Oliveira e Glória R. P. C. Queiroz.


As pimentas e a química orgânica


Muitas das especiarias importantes na história são originárias do continente asiático. Uma pimenta muito utilizada até os dias atuais, e que também foi comercializada a partir da Ásia é a pimenta do reino, de nome científico Piper nigrum. Atualmente, a pimenta do reino é facilmente cultivada em áreas tropicais do planeta, devido a sua adaptação. Uma das moléculas orgânicas mais importantes que conferem o sabor ardente à esta pimenta é a piperina.

Estrutura molecular da piperina. (1)

Anteriormente à descoberta do caminho para as Índias pelo navegador Vasco da gama, a pimenta do reino era comercializada por um monopólio conhecido por “rotas das especiarias terrestres”. Nesta época, este monopólio cobrava preços que não permitiam o acesso de todos os europeus à pimenta do reino. Desta forma, ainda nesta época encontrou-se um substituto para esta especiaria, mais acessível, conhecido como grãos do paraíso. Esta especiaria que substituiu a pimenta do reino possui vários nomes populares como atarè, pimenta jacaré e pimenta da guiné, de origem no continente africano.

Pimentas atarè. (2)

A pimenta atarè foi descrita como tendo um sabor peculiar e delicioso: após a ingestão de alguns grãos desta pimenta, aromas são sentidos em um primeiro momento, subitamente sendo trocados por sensação de aquecimento e dormência junto a sabores semelhantes à jasmim, avelã, manteiga e frutas cítricas. Muito do sabor presente nesta pimenta é ocasionado pela existência de quatro moléculas orgânicas que conferem estes sabores, sendo elas o paradol, o shogaol, o zingerone e o gingerol, representadas na figura abaixo.

Estruturas moleculares das moléculas que conferem sabor ao atarè. (1)

Repare que todas as quatro moléculas orgânicas possuem em comum a estrutura do zingerone.


Estruturas das moléculas que conferem sabor ao atarè, com destaque à parte comum das estruturas. (1)

Também possuem as funções orgânicas fenol, cetona, éter e álcool.

Grupos funcionais presentes nas moléculas orgânicas. (1)

Após Vasco da Gama descobrir a rota para as Índias, as especiarias na Europa se tornaram mais baratas, devido ao acesso mais fácil à Ásia. Até este momento o atarè prosperou, mas perdeu espaço com o acesso menos restrito à pimenta do reino.


Esta nova rota permitiu que o navegante português Pedro Álvares Cabral chegasse ao Brasil junto de suas frotas. Boa parte desta história vocês já sabem, mas aqui focaremos nas pimentas. Após a chegada à América, os europeus tiveram contato com novas plantas, animais e outros povos humanos. Dentre as novas plantas, os europeus descobriram um novo gênero de pimentas, as Capsicum, que contam com pelo menos 27 espécies. Todas estas espécies possuem a molécula de capsaicina, que confere o sabor ardente característico de pimenta. A molécula de capsaicina está representada abaixo. Repare que sua estrutura molecular é semelhante às moléculas presentes no atarè, mas esta molécula se difere por algumas ramificações de cadeia carbônica e pela presença da função amida, além do grupo fenol e éter.

Estrutura molecular da capsaicina. (1)
Estrutura molecular da capsaicina, com grupos funcionais destacados. (1)

Pimentas e as religiões de matrizes africanas e indígenas


Mas o que estas pimentas citadas têm a ver com algumas religiões? Bom, tem muito a ver!


Na religião de matriz africana candomblé a pimenta atarè é de extrema importância. Esta pimenta é utilizada em rituais onde se busca a comunicação com o Orixá mensageiro Exu. Os Orixás são deuses do candomblé que receberam de Olodumare (ser supremo) a tarefa de criar e governar o mundo. Exu também é um Orixá, um deus mensageiro entre os humanos e os outros Orixás. Para se comunicar com qualquer Orixá, é necessário antes se comunicar com Exu. Em ritos do candomblé de comunicação com Exu, é necessário que se mastigue a pimenta atarè, que serve como anticéptico bucal, purificando o hálito e eliminando as energias negativas das palavras que serão proferidas com o Orixá Exu.

Representação do Orixá Exu. (3)

Exu portanto, é considerado o dono dos caminhos, o mensageiro, aquele que leva a palavra, e por esse motivo sempre recebe ebó (oferenda), para que possa levar as mensagens até as outras divindades. Repare que no Brasil, por muitas vezes Exu é associado erroneamente à demônios, mas essa associação foi criada por missionários cristãos na época da colonização, e até hoje infelizmente permanece.


As pimentas do gênero Capsicum antes de serem descobertas por europeus já eram amplamente utilizadas nas culturas locais do Brasil daquela época. Os povos que hoje denominamos indígenas utilizavam pimentas não só para a sua culinária, mas também em rituais e até mesmo como armas de guerra. Um dos relatos sobre os usos de pimentas por povos originários foi feito por um alemão chamado Hans Staden (Homberg, 1525 — Wolfhagen, 1576).

Retrato de Hans Staden (1525 - 1576). (4)

Hans Staden ficou conhecido por seu livro intitulado “História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América, Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até os Dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a Conheceu por Experiência Própria e agora a Traz a Público com essa Impressão” e também conhecido por “Duas Viagens ao Brasil” publicado em Malburgo em 1557. Neste livro, o alemão descreveu sua estadia com indígenas sul-americanos daquela época, a cultura daquele povo juntamente com seus rituais antropofágicos, animais e plantas da região. Dentre algumas descrições, Hans Staden relata que um dos processos dos indígenas para obter as pimentas envolvia o plantio, a colheita quando estes vegetais estavam maduros e a secagem ao sol. No capítulo 12, Staden descreve como os indígenas preferiam usar pimentas verdes ao sal (produzido através de cinzas de palmeiras) quando preparavam peixes ou carnes. No capítulo 28, Staden relata o uso de pimentas como armas de guerra:

Ouvi deles [indígenas], embora não o tenha visto pessoalmente, que usam pimenta, que cresce em abundância entre eles, para desalojar os inimigos de suas fortificações. Isso ocorre da seguinte maneira: quando o vento sopra, fazem uma grande fogueira e jogam um monte de pés de pimenta. Se a fumaça atinge as cabanas, os inimigos têm de sair. Assim eles relatam, e eu acredito, pois estive, certa vez, como já foi narrado, com os portugueses numa província da terra que se chama Pernambuco. Lá ficamos no seco com um navio num braço do mar, pois perdemos a maré alta, e apareceram muitos selvagens que queriam nos fazer prisioneiros, mas não tiveram êxito. Jogaram muitos arbustos secos entre o navio e a margem e esperavam expulsar-nos com a fumaça da pimenta, mas não conseguiram pôr fogo nos arbustos.

As pimentas aqui citadas possuem contexto e história, e além de estarem relacionadas com culturas e religiões importantes para o Brasil, não deixam de estar interligadas com o saber popular e científico. Para entender um pouco mais sobre saberes populares, confira nosso post anterior aqui.


Você já sabia sobre estas informações sobre as pimentas? Já ouviu sobre os compostos orgânicos que ocasionam a ardência? Sobre o uso das pimentas em rituais religiosos? Se quiser, deixe nos comentários suas impressões sobre o tema. Até mais!


(1) Fonte: Dos/as autores/as.

(2) Fonte: https://babaojeleke.wordpress.com/2016/12/31/atare/

(3) Fonte: https://www.aguasdearuanda.org.br/post/2018/06/11/13-de-junho-dia-do-orix%C3%A1-exu

(4) Fonte: STADEN (2011).


Referências


OLIVEIRA, RDVL; QUEIROZ, GRPC. Conteúdos cordiais: Química humanizada para uma escola sem mordaças. São Paulo, Editora Livraria da Física, 2017.


STADEN, H. Duas viagens ao Brasil. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.

612 visualizações2 comentários

2 Comments


marreca222
Feb 12, 2021

A vida não tem graça sem uma boa pimenta... quanto mais ardida, melhor.🌶

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lorenalap1
Dec 01, 2020

Super interessante!!! Não tinha conhecimento dessas informações. E tb nunca ouvi falar da pimenta atarè. Fiquei curiosa! Quero prova-la!

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